Natal da FEB foi melancólico, congelante e cheio de bombas

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Em pé, da esquerda para a direita: tenente Carlos Pinto da Silva, Major Olívio Gondim de Uzêda (comandante do 1o Regimento), Giovannengelo Rizzo e outro soldado não identificado. Agachados: 2o Tenente Paulo Campos Paiva e Subtenente Mauro. Ah, e tem o mascote deles ali também! Todos são do 1o Regimento de Infantaria no inverno de 1944-45. Foto da foto disponível no Museu do Expedicionário de Curitiba/PR

O Natal de 1944 foi um tanto quanto diferente para os jovens brasileiros que estiveram combatendo junto à Força Expedicionária Brasileira – FEB, na Itália, contra as forças nazifascistas. Longe das ceias regadas com boas comidas, uma cultura familiar e o calor das terras brasileiras, eles receberam bombardeio, tiros de inquietação e ficaram no frio abaixo de zero do pior inverno dos últimos 50 anos até então.

Essas histórias estão registradas em livros e relatos de ex-combatentes e seus comandantes, além de crônicas jornalísticas dos correspondentes que acompanharam a tropa. No Brasil, famílias estavam aflitas com seus filhos longe de casa e não foram registradas grandes comemorações, afinal, o mundo estava em guerra.

Do outro lado do oceano, espalhados pelo interior do norte da Itália e em 15 km frente a frente com os alemães em posições defensivas e ofensivas, na véspera de Natal os brasileiros esperavam que talvez pudesse haver uma trégua, o que não ocorreu em boa parte do setor da FEB.

No livro “Crônicas de guerra”, o Coronel Olívio Gondim de Uzeda conta que perto da meia noite os alemães despencaram bombas em cima das posições que ele ocupava com seus homens e que por isso, eles ficaram muito irritados com os inimigos. “Será que nem nesse dia esses malditos alemães não arrefecem sua crueldade? Não pensam em suas famílias? Não têm mãe, não têm filhos?”, questionou o oficial.

Em meio ao canhonaço, ele refletiu sobre o que fazia ali. “Abandonáramos nossa esposa e nossos filhos! Afastados do lar e da família! Exilados da Pátria! E sujeitos a bombardeios incessantes de um inimigo impiedoso e mau! Que mal havíamos praticado para, não só não merecermos um presente, mas para sermos castigados, e tão fortemente!”.

Enquanto ele pensava, tocou o telefone. Um capitão pedia para responder aos alemães à altura e com mais bombas ainda. A autorização foi concedida e os brasileiros devolveram o “presente” em dobro.

A melancolia dos soldados

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O pracinha Aziz Salamane tentando esquiar na neve daquele inverno

Diz um trecho do diário de anotações do pracinha Aziz Salamene, do Mato Grosso do Sul, descendente de árabes e soldado do 9º Batalhão de Engenharia, no livro “Febianos: histórias e recomeços”, de Maria Madalena Dib Mereb Greco:

“A 24, véspera de natal, trabalhei o dia todo. À noite senti saudades dos meus e por isso bebi muita grappa[1] e fiquei um pouco passado, aferventei castanhas e tinha nozes, avelãs, chocolate e mais alguma coisa. Fiz tudo sozinho, recordando os natais que fazia em casa. A meia noite, fui à Missa do galo, foi muito bela, rezou-a o nosso capelão, o qual fez um bonito sermão. Tinha quase toda a população de Suviana[2]. Sentei-me junto ao meu amigo Bocca. A 25, dia de natal, trabalhei o dia todo. Na hora do almoço, ganhei uma caixa com presentes enviados pela LBA [Legião Brasileira de Assistência]. Foi um dia muito triste para mim”.

Saturnino Rodrigues, que era da Infantaria no 11° Regimento, também não tinha boas lembranças daquele dia. “Natal? Nem vimos passar. Não vimos não. Era uma zoada, rapaz! Nada! Não tinha nada. Os coitados [italianos] queriam agradar a gente, mas não tinham nem o que comer, para falar a verdade. Vinham comer com nós, quando a gente saia para tomar um arzinho”, contou no livro “Confissões do front: soldados do Mato Grosso do Sul na II Guerra Mundial, de Helton Costa.

De fato, os italianos estavam vivendo dias difíceis. Os pesquisadores Walter Belissi e Marilia Cioni contam no livro “Batalle sul Crinale”, que no Natal de 1944 a comida era pouquíssima para os civis e que para completar, havia doenças se espalhando por conta do frio e das condições gerais de higiene, ou da falta dela, inclusive com corpos insepultos em várias partes do front, em especial em Montese, que estava sob ocupação alemã.

Os tedescos, não contentes em ocupar casas de civis, sob o pretexto de pagar depois (alguns pagaram, outros não), faziam feiras de produtos entre os soldados, com materiais roubados ao longo da campanha. Os moradores não tinham dinheiro para comprar. Eles eram os “donos dos destinos” daquelas pessoas e não se envergonhavam em pegar animais dos civis sem pagar.

Os correspondentes anotaram a data

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Soldado da FEB em posição no inverno.

Francis Hallawell transmitiu um programa especial pela BBC e em ondas curtas em canal restrito, para os soldados da FEB. Nessas horas, conforme relatos dos jornalistas, o rádio da companhia se transformava em rádio convencional e havia um revezamento para cada um escutar um pouco do programa.

Thassilo Mitke estava junto de soldados de um grupo da Engenharia. Pouco antes da meia noite eles receberam a ingrata missão de limpar um campo minado perto de uma vila, pois, civis poderiam passar ali, E lá foram eles. Mitke ficou muito impressionado com o fato.

Raul Brandão falou que os Pracinhas pareciam crianças com tanta neve, pois, muitos deles, senão a maioria, jamais tinha presenciado aquele espetáculo da natureza.

Rubem Braga passou o Natal em Florença, fugiu do front para descansar e Henry Bagley, um jornalista americano que cobria a FEB, fez uma árvore de Natal na entrada da casa em que moravam os jornalistas, em Porreta Terme. A decoração era com munição de vários calibres e velas coloridas no pinheirinho.

Já Joel Silveira passou o Natal na posição de Artilharia do Major Henrique Oest, de frente para o maciço de Soprassasso. Beberam e ficaram animados juntos com a tropa.

Para os oficiais da Engenharia, foi bom

Machado

O Coronel Machado Lopes, com ar reflexivo nessa foto, naquele Natal esteve bem servido e fez os comandados participarem de homenagens

No livro “Engenharia de combate na campanha da Itália”, o comandante dos engenheiros, Coronel José Machado Lopes, conta que no dia 23 de dezembro uma nevasca assolou o front da FEB. Quando amanheceu, tudo estava branco e ele foi almoçar com seus oficiais comandados, inclusive, com direito a bolo confeitado de sobremesa.

Depois houve uma ceia e uma recepção com bandeiras do Brasil e dos Estados Unidos, com todos os oficiais passando em cumprimento à Lopes. Depois vieram os sargentos e por último, um Cabo e um soldado por unidade de combate.

A Missa do Galo foi realizada na pequena igreja de Suviana, com oficiais de várias unidades para assistir. Quando deu meia noite, os alemães iluminaram toda a frente com “very lights”, que são sinalizadores. Os brasileiros prontamente responderam com barragem anti-aérea e munições traçantes (luminosos). Foi uma troca de gentilezas, apenas tiros para iluminar a noite.

Tomado pelo “espírito natalino”, Lopes ainda pediu ao seu desenhista que fizesse um Papai Noel trazendo no saco de presentes uma mulher cheia de curvas, estilo “pin up”. Em seguida, escreveu essas rimas:

Presente de Natal (coquetel de línguas)

Volette[3] voi uma regazza[4] linda

Que tenha charme e uma beleza infinda?

Que queira scatoletta[5] e beba vino,

Que vogliá[6] cigarette per papá,

Que peça caramell per bambine[7],

Que tope uma parada para já?

Que enfrente essa nevada sem paúra[8]?

Fazei bem presto[9] e adesso[10], em quatro vias,

Pedido urgente dessa criatura,

Ao Dump[11] americano de gurias”.

Outro lado

tedesco

Uniformes alemães de neve e que foram usados na guerra contra o Brasil. Estão em exposição no Museu de Montese.

Do lado alemão, o Natal, segundo o tenente Heinrich Boucsein [comandava uma das unidades que lutava contra os brasileiros], no livro “Bombardeiros caças guerrilheiros: finale furioso na Itália”, houve panetones e quentão para toda a tropa e as correspondências de casa foram entregues. Eles também fizeram uma escala de serviço especial e cada oficial ficou responsável pelas ações de seus grupos, o que explicaria a troca de tiros contra os brasileiros somente em alguns pontos do front.

Longe dali, em um campo de prisioneiros na Alemanha, Altino Bondesan, de São Paulo, que fora feito prisioneiro pelos alemães em 31 de outubro de 1944, em Somacolonna, estava em um campo de concentração com outros 50 mil homens de várias nacionalidades. Ele conta essa experiência no livro “Um pracinha paulista no inferno de Hitler”. Pelo menos lá, os prisioneiros que ganhavam apenas meia quantidade de comida, no Natal, ganharam a quantidade completa. Os soldados cantaram canções natalinas e cada um do seu jeito se recolheu em suas lembranças. Altino sobreviveu ao campo e voltou para o Brasil no final da guerra.

Glossário
[1] Pinga de bagaço de uva.

[2] Cidade que era o Quartel general da Engenharia Brasileira.

[3] Quer

[4] moça

[5] Gíria para caixinhas brasileiras que tinham alguma coisa de valor e eram trocadas por quase tudo no front.

[6] queira

[7] criança

[8] medo

[9] rápido

[10] depois

[11] Gíria para o cara que conseguia garotas para os soldados.

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