Cartão da II Guerra reaproxima família de soldado brasileiro e amigos da Itália

O Cabo Nelson Guedes recebeu o cartão dos amigos italianos em 1946
No dia 25 de abril de 1945, perto de cercar toda uma Divisão Alemã (mais de 14 mil soldados), o comando da FEB designou os Pracinhas para locais de ocupação estratégicos para evitar a fuga dos alemães. Um deles, a pequena San Polo D’Enza, em Reggio Emilia. Ainda hoje a cidade não cresceu muito e tem cerca de cinco mil habitantes.
A cidadela ficava pouco mais de 30 km do local em que os alemães se entregariam incondicionalmente, em Collecchio. Os brasileiros venceram e uma semana depois estavam em San Polo como tropas de ocupação.
Ali morava um senhor de nome Michele Callà, carpinteiro, pai de Aronne, Leda e Elsa, filhos de um primeiro casamento. Ficou viúvo e se casou de novo com Lia, gerando a filha mais nova, que ganhou o nome de Franca.

San Polo nos dias após a guerra
Assim que os brasileiros chegaram, como Michele tinha quartos sobrando na casa, os alugou para os Pracinhas. Um deles se chamava Nelson Guedes, Cabo do 6º Regimento de Infantaria. Nelson se instalou ali com os amigos e pagavam as diárias em dinheiro e comida. Como já desenrolavam bem o italiano, ficaram amigos da família, que não lhes deixava faltar nada, inclusive divertimento, organizando pequenos bailes com o pessoal da vizinhança. “A presença deste grupo de soldados foi um evento de grande interesse para a cidade de San Polo (onde não acontecia muita coisa). Todos os vizinhos estavam interessados em ouvir notícias de soldados brasileiros e pedir informações para a família Callà. Minha avó costumava dizer que à noite, as festas da aldeia eram organizadas com soldados brasileiros”, conta Valéria Davoli, neta de Leda.

Da esquerda para a direita: Elsa, Donatella (uma amiga delas de Milão), Leda e Franca
Um belo dia os soldados receberam ordem de embarcar para o Brasil. Em lágrimas se despediram dos amigos que lhes trataram tão bem. Um ano depois, chegava na casa de Nelson um cartão postal de San Polo D’Enza. Dizia:
Das amigas de uma aldeia italiana, você vem a mim com as mais calorosas saudações e nossa memória afetuosa.
Leda, Elsa e Franca Callà
San Polo D’Enza, 13/02/1946
Antes dos brasileiros, os italianos
Antes que os brasileiros chegassem de San Polo, outro exército estivera hospedado na casa da família Callà. “A casa no andar de cima tinha um apartamento que era usado por oficiais do exército italiano quando eles vieram fazer manobras na área. No último período, antes de 8 de setembro de 1943, vieram os soldados do 33º Regimento de Infantaria Carrista da Divisione Corazzata “Littorio”, com sede na província de Parma”, afirma Massimo, filho de Elsa.
No final de abril de 1945, os brasileiros chegaram, junto com o pessoal da Saúde, que tratou dos civis da região, inclusive da Sra. Lia. Aronne e as irmãs viam tudo aquilo acontecer e a cidade ficar movimentada. “Mamãe lembra que eles eram garotos corretos e simpáticos. Em particular, ele se lembra de um soldado de origem italiana (siciliano, para ser preciso), que deveria chamar-se José Militello [era Cabo do 6º R.I.], que tinha como característica não ter os dois dentes da frente. A mãe tentou ajudar os soldados a aprender italiano e uma vez os corrigiu enquanto falavam em português (acreditando ser italiano incorreto). Isso os divertia muito”, resume Massimo.
Um namoro

O Cabo Nelson e parte dos amigos que ele sempre tinha por perto, inclusive o Arnaldo, que ele gostava tanto que batizou o filho com o mesmo nome.
“Mamãe era uma garota bonita e um oficial brasileiro fez a meu avô um pedido oficial de casamento para sua filha, mas meu avô disse que não, porque ele não queria que Elsa fosse tão longe da Itália. Como as relações com esses soldados eram boas, quando voltaram ao Brasil, lembraram-se das meninas italianas e escreveram para elas. O cartão postal que você encontrou é a resposta para uma dessas cartas”, sustenta o filho de Elsa.
No pós-guerra, a vida deu rumo diferente para cada um dos amigos. Isso até o Arnaldo Guedes, filho de Nelson e batizado com o nome do melhor amigo do Pracinha, nos mandar uma foto do cartão. Colocamos na página e a partir daí, os fatos foram se encaixando e as coisas acontecendo.
Primeiro a neta de Leda, Valéria respondeu. Depois, o tio dela, Massimo, filho de Elsa entrou em contato com a gente. Agora você confere o desfecho!
Destinos diferentes

O Cabo Nelson Guedes
Cabo Nelson Guedes: era farmacêutico antes da guerra, foi convocado e seguiu junto ao 6º Regimento de Infantaria. Retornou vivo e casou-se com Ilda de Souza Guedes, já em 1947. Voltou a trabalhar como farmacêutico.
Tiveram quatro filhos: Arnaldo, Nelson Júnior, Fátima e Hamilton. Teve ainda cinco netos.
Segundo Arnaldo, o pai “ajudou muito seus amigos da FEB”, pois, era “muito atuante nas Associações de ex-combatentes, tanto em Jacareí, nossa cidade natal, quanto em Santo André, onde passamos a viver a partir de 1972”, conta ele.
Até os 90 anos era o Secretário da Associação de São Bernardo do Campo. Porém, com, a idade começaram os problemas de saúde. Primeiro o diabetes e depois o Mal de Alzeihmer. Faleceu em 2017, aos 95 anos. “Temos muito orgulho dele”, disse Arnaldo, que adiantou estar preparando um livro sobre o pai Pracinha.
Leda Callà: depois da guerra, se casou em setembro de 1948 com Franco Ferrarini, um farmacêutico italiano de uma cidade ao lado de San Polo. Moraram em várias aldeias na província de Reggio Emilia, por conta das transferências de emprego de Ferrarini. Em 1951 eles tiveram uma filha chamada Fabrizia Ferrarini, mãe da Valéria. “Minha avó morreu em 2014”, explica a neta.

Foto do arquivo de Pedro Lages Moreira, que mostra o Cabo Nelson (2° da direita para a esquerda), com amigos.
Franca Callà: a irmã mais nova era professora de Ciências e era muito bonita. “Infelizmente, ela teve uma vida ruim porque estava sempre doente. Entrou e saiu de casas de repouso, nunca se casou e morreu em 2004”, comenta Valéria.
Aronne Callà: o único da família que continuou morando em San Polo, na casa de seu pai Michele (aquela onde os soldados brasileiros também viviam). Morou e trabalhou ali como fabricante de móveis, até morrer, em 2015. Atualmente a filha, Daniela Callà, mora na casa.
Elsa Callà: se casou com um jovem de Parma e ainda vive em Parma. Sim, Elsa ainda está viva, aos 95 anos de idade. Ela teve dois filhos, Mario e Massimo. Massimo é professor e Mario é formado em Ciências Alimenatres e trabalha no Consorzio del Parmigiano-Reggiano. “Ela sempre foi uma mulher cheia de interesses e caráter muito forte. Por exemplo, foi uma das primeiras mulheres de Parma a tirar a carteira de motorista!”, acrescenta Valéria. “Minha mãe não se lembra de mais nada: tantos anos se passaram”, explica Massimo, contando que a mãe perdeu boa parte da visão e que nem as fotos dos brasileiros ela conseguiu ver. Elsa não tem netos.
A página V de Vitória passou o contato das famílias umas para as outras, para que possam restabelecer contato.

O Cabo Nelson Guedes
Crédito das fotos de Nelson Guedes: Acervo de Arnaldo Guedes e Pedro Lages Moreira.
Foto das moças e de Elsa: Massimo Callà.
Reportagem: Helton Costa (V de Vitória)
Excelente artigo. Acompanharei o blog mais de perto.
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Bela e emocionante história de vida.
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