FEB: discurso de ator do “Zorra” tem pelo menos 17 pontos duvidosos
Você possivelmente já deteve ter visto o vídeo do ator Nelson Freitas falando sobre a FEB. A versão dele, que já teve mais de 185 mil visualizações na Internet (veja no final do texto), tenta emocionar quem assiste ao falar sobre os Pracinhas. Fomos checar o discurso e encontramos pelo menos 17 pontos questionáveis, apontados como imprecisos ou falsos. Confira.
0:00 a 2:51 – Introdução
Nelson Freitas (58 anos) é ator, produtor e humorista, tendo ficado muito conhecido do público em geral, principalmente entre 2001 e 2015, por participar do Zorra Total, na Rede Globo. Atualmente está no quadro “Dança dos famosos”, do Domingão do Faustão. Na primeira parte do vídeo, ele faz uma introdução e interpreta alguns valores para poder entrar no assunto FEB. Na juventude, ele foi aluno de Colégio Militar, daí o interesse sobre a temática. O
2:52 a 3:00 – Getúlio Vargas flertando com o “Eixo do mal” – IMPRECISO
A declaração é imprecisa se analisada dentro do contexto da época. Isso porque, é preciso lembrar que o Brasil manteve relações comerciais, diplomáticas, e políticas com Alemanha até antes da declaração da guerra, mas que, em 1938, o Partido Nazista da mesma forma que outros partidos estrangeiros, foi proibido no Brasil e que mesmo com reclamação oficial dos representantes tedescos no país, Getúlio Vargas não mudou de posição em manter a proibição. A guerra começou no ano seguinte.
Quem lembrou esse fato e outros, em 2013, foi Ana Maria Dietrich, principal pesquisadora sobre o nazismo no Brasil. “Poucos meses antes desta promulgação, o então embaixador alemão no Brasil, Karl Ritter, teve uma audiência com o presidente Getúlio Vargas e se queixou da medida e também da posição da imprensa brasileira contra a Alemanha. Ritter disse pessoalmente ao presidente que estas medidas iriam causar uma repercussão ruim nas relações comerciais e políticas entre Brasil e Alemanha”, escreveu ela, dizendo mais adiante que a reclamação não gerou qualquer revogação[1].
Também é importante lembrar que assim que foi autorizada a guerra, os descendentes de países do eixo entraram na mira do governo para serem investigados. Inclusive, houve campos de concentração no Brasil, onde ficavam os prisioneiros tidos como suspeitos.
No entanto, ao longo das décadas pós-FEB, não faltaram autores que de fato apontaram as supostas simpatias da família Vargas com o regime alemão. Um dos livros mais conhecidos e que foi amplamente vendido na década de 2010, é o “Espiões, diplomatas e a influência nazista no Itamaraty”, de Roberto Lopes. Porém, pesquisas mais recentes, em arquivos americanos, como as do professor e historiador, Dennison de Oliveira, no livro “Aliança Brasil-EUA: nova história do Brasil na Segunda Guerra Mundial” (2015), nota-se uma relação brasileira com americanos e alemães, que o pesquisador aponta como “pendular” até antes da guerra, mas, que não tem nada de nazista.
Já no livro de 2019 de Giovanni Latfalla, com o título “Relações militares Brasil-EUA: 1939/1943”, o pesquisador, que é oficial do Exército do Brasil, vasculhou arquivos americanos da época e concluiu que “pela documentação estudada, está claro que a Cúpula do exército do Brasil sempre defendeu, em caso de uma nova guerra mundial, uma aliança com os Estados Unidos”. “Não foi encontrado nenhum documento que indicasse que o Exército brasileiro defendia, ou mesmo houvesse planejado, uma aliança com o Eixo, contrariando alguns pesquisadores, que afirmam que o Brasil quase se voltou para o lado da Alemanha nazista, baseados no impasse resultante da dificuldade de o Brasil receber equipamento bélico dos Estados Unidos, e na dificuldade para chegar ao entendimento”, escreveu entre as páginas 272 e 276.
Outros autores, como William Waack, defenderam sem a devida contextualização, que o próprios americanos tinham afirmado que o governo Vargas flertava com os nazistas. Latfalla avaliou diferente e defendeu que tais opiniões se davam em vista do despreparo dos militares americanos que serviam no país, que acertavam em algumas análises, mas emitiam opiniões que o autor chama de “absurdas” em outras ocasiões.
“Com relação à desconfiança dos estadunidenses acerca da simpatia de diversas autoridades brasileiras com o nazismo, inclusive relacionada aos generais Dutra e Góes Monteiro, estas também não procedem: eles eram simpatizantes dos feitos do exército alemão e de seus generais, e não do nazismo, como visto por muitos outros militares de diversos países da época. Com certeza os dois pretendiam o melhor para o exército do Brasil, e, naquela oportunidade, as estratégias táticas e equipamentos militares da Alemanha ocupavam um lugar de destaque no cenário mundial. As pesquisas mais atualizadas sobre a Segunda Guerra Mundial, mesmo a contragosto de muitos, têm mostrado as qualidades militares do exército alemão”, completou Latfalla.
Por isso, as afirmações do ator foram consideradas IMPRECISAS, uma vez que ele se baseou no senso comum. Somente esta parte do que ele disse já renderia um bom debate.
3:00 a 3:17 – a criação da FEB com voluntários de todas as partes do país, com “Voluntários da Pátria” – FALSO
O número de voluntários para a FEB foi baixíssimo. Dos mais de 25 mil soldados enviados, apenas 1.357 voluntários foram aceitos, “depois de dois anos de massiva divulgação da campanha de alistamento, que só conseguiu mobilizar cerca de 2.500 candidatos”, explica o pesquisador César Campiani, no livro “Onde estão nossos heróis?” (1995). “O fator ideológico incentivou uma pequena quantidade de voluntários, notadamente comunistas, mas, além disso, a campanha governamental não encontrou grande respaldo, e a grande parte da FEB foi composta de convocados”, completou o autor.
Paulo Adriano L.L. Telhada, no livro “A Polícia de São Paulo nos campos de batalha da Itália” (2001), tem a mesma opinião. Além do mais, Voluntários da Pátria é a forma como ficaram conhecidos os combatentes recrutados na Guerra do Paraguai (1864-1870), não tendo ligação com a FEB.
3:18 a 3:25 – primeira missão era conquistar um posto avançado nos Alpes italianos, chamado Monte Castello – FALSO
Antes de chegar a Monte Castello, os brasileiros lutaram no vale do Rio Serchio, onde permaneceram da metade de setembro de 1944, até 31 de outubro do mesmo ano, tendo libertado dezenas de localidades, tais quais: Massarosa, Camaiore, Monte Prana, Borgo a Mozzano, Barga, entre outras, que foram tomadas com combates e/ou ocupadas.
São tidas como as três primeiras conquistas da FEB, Massarosa/Monte Comunale e Il Monte. O primeiro ataque ao Monte Castello só ocorreria em 25 de novembro de 1944. Além do mais, os brasileiros combateram nos Apeninos italianos e não nos Alpes, que ficam já na fronteira com a Áustria e Suíça, por exemplo. E Monte Castello fica nos Apeninos.
3:26 a 3:41 – soviéticos de um lado, americanos de outro e os brasileiros vindo do sul, sem cobertura de nenhum dos lados – IMPRECISO E FALSO
É imprecisa a informação de que os americanos vinham do ocidente e os soviéticos do oriente. Seria mais correto dizer que os aliados de modo geral vinham do oeste. Quanto aos brasileiros virem do sul e sem cobertura, também é impreciso e falso. Os brasileiros chegaram no sul, mas, na época do ataque final ao Monte Castello (21/02/1945), que parece que é o que o ator quer se referir, já estavam no norte do país.
Quanto a estar sem cobertura, não é verdade, já que atacar Monte Castello era uma das missões que compreendiam uma operação maior comandada pelos americanos, que tinham como objetivo principal, o Monte Belvedere. Quatro ataques falharam por motivos diversos e no ataque de 21 de fevereiro, quando os Pracinhas venceram, a empreitada foi sincronizada e com apoio aéreo e de artilharia dos próprios brasileiros. Os americanos também conquistaram o Belvedere.
3:42 a 4:00 – fortíssima defesa nazista e operação quase impossível – FALSO
O ataque de 21 de fevereiro não era uma missão quase impossível. Ao contrário das outras quatro vezes, quando por motivos diversos os ataques falharam, no quinto ataque houve uma boa coordenação e até o clima ajudou, estando o dia limpo para que aviões brasileiros e a artilharia pudessem trabalhar. A infantaria foi e fez a parte dela, sendo que após as 18h o Monte já estava em mãos brasileiras.
4:01 a 4:03 – o frio matava todo mundo, nem precisava de nazista –FALSO
Era bem frio durante o inverno italiano de 1944-45, com termômetros marcando até 20 graus negativos nos pontos mais elevados. No entanto, a FEB não atacou Monte Castello no período de nevascas. No máximo foram enviadas patrulhas.
Os ataques foram em 25, 26 e 29 de novembro de 1944 e em 12 de dezembro do mesmo ano. Ainda que estivesse frio, não havia começado a nevar, o que só ocorreu perto do natal. E não, o frio não mataria os Pracinhas se eles estivessem lá em cima. Tanto que os alemães sobreviveram…
4:04 a 4:21 – fardamento ruim e tempo de subida até meia noite – IMPRECISO E FALSO
Falar que o fardamento brasileiro era ruim, quando os Pracinhas chegaram à Itália, seria correto, porém, quando os brasileiros entraram em linha, foram para o front, tiveram seus uniformes completados com material americano e puderam, já em setembro de 1944, contar com um uniforme “bom”, igual aos dos colegas de guerra.
A história de subir o Monte até a meia noite é totalmente falsa. Não havia nenhuma determinação do tipo. Inclusive, as patrulhas enviadas para as linhas inimigas saiam, geralmente, de madrugada, após a meia noite. O ator quis enfeitar a fala dele.
4:22 a 4:53 – deu meia noite e eles estavam no meio do caminho e perceberam que estavam em uma missão suicida, que se voltassem dali era tiro nas costas e se subissem era tiro no peito- FALSO
Como dito não havia nenhuma determinação de chegar ao topo do Monte até a meia noite. Além do mais, em 21/02/1945, no ataque final ao Monte Castello, que foi tomado por volta das 18h, não se tratava de uma missão suicida e sim, bem planejada, iniciada ainda na parte da manhã daquele dia. Da mesma forma, não há qualquer relato de ameaça de morte em caso de recuo. Logo, não existia a possibilidade de morte dos Pracinhas caso recuassem, tanto que nos quatro ataques anteriores, eles haviam recuado ordenadamente até as linhas de partida.
4:54 a 5:19 – muita gente não tinha ideia do porquê estava ali – IMPRECISO
É perigoso generalizar. Pode-se dizer que havia alguns que não sabiam ao certo os motivos da entrada do Brasil na Segunda Guerra, mas, não representavam a maioria. Isso porque havia campanhas publicitárias, cinejornais, programas de rádio, comunicados e outros meios de comunicação (que incluíam palestras de oficiais já no front), que davam conta de informar os Pracinhas. Em 21/02/1945, no ataque a Monte Castello, é difícil dizer que alguém ainda desconhecesse os motivos de estar no front…
5:20 a 5:48 – Pracinhas conversando em meio ao suposto fogo – IMPRECISO
Dificilmente os Pracinhas conversariam durante um bombardeio ou quando estavam sendo alvejados por tiros diretos das armas alemãs. Então, a conversa da forma como o ator coloca, é imprecisa, uma vez que isso seria bastante improvável na linha de frente e sob fogo, ainda mais em Monte Castello. Na retaguarda ou na base de partida, talvez pudesse acontecer.
5:49 a 7:02 – a conversa virou uma música: a Canção do Expedicionário – FALSO
O ator se emociona ao falar da Canção do Expedicionário, porém, ainda que comovente, tal informação é falsa. O historiador Wilson de Oliveira Neto resumiu bem a história em suas redes sociais. “De uma vez por todas: a versão que conhecemos é de 1943, fruto de um concurso promovido em São Paulo. A melodia é de Spartaco Rossi e a letra de Guilherme de Almeida”. O mesmo diz Maria Eliza Pereira, na tese de doutorado “Você sabe de onde eu venho? O Brasil dos cantos de guerra (1942-1945), de 2009 (tem de graça na Internet). Somente depois, já no final da guerra é que a música caiu no gosto popular.
7:03 a 7:22 – gente doida que cantou de madrugada, que tinha queimado bandeira nazista e tomado o Monte (…) Abriram uma das defesas mais difíceis da guerra na Itália, entraram em um navio e voltaram para casa – FALSO
Não há relatos de qualquer Pracinha cantando de madrugada em Monte Castello. Até porque, não deu tempo, pois, assim que chegaram ao topo, os alemães ajustaram a artilharia deles em cima dos brasileiros e se seguiu um grande bombardeio. Entre 21 e 24 de fevereiro de 1945, os brasileiros se esforçaram para manter as posições conquistadas, tendo um baita trabalho para consolidar também La Serra-Cota 958 e Bella Vista, vizinhas de Monte Castello.
Também não há relato de qualquer bandeira nazista queimada. Inclusive, materiais alemães capturados em Monte Castello estão hoje no museu do 9º Batalhão de Engenharia, em Aquidauana/Mato Grosso do Sul.
E mais: a guerra continuou depois de Monte Castello, com batalhas em Castelnuovo e Montese, que foi o combate mais sangrento da FEB (14 a 19 de abril de 1945). Monte Castello tinha valor moral para os brasileiros, estratégico para o para o prosseguimento das operações americanas, mas, não era uma das frentes mais importantes da guerra na Itália. Os brasileiros só começaram a voltar para casa em junho de 1945, com a guerra tendo terminado em 30 de abril de 1945 para a FEB.
7:23 a 7:38 – descobriram que uma guerra de verdade não se faz por ideologia – FALSO e IMPRECISO
O que é uma guerra de verdade? Desse questionamento já é possível ver a subjetividade da afirmação, mas, os brasileiros foram combater as ideologias nazistas e fascistas e para isso fizeram parte de uma junção de democracias liberais com a União Soviética comunista (ambas ideologias ou derivadas delas). Mesmo o Brasil vivendo uma ditadura no Estado Novo, oficialmente os soldados do país foram combater por liberdade contra ideologias totalitárias e ao lado de ideologias que também recebiam e ainda recebem críticas. Parece ilógico, mas, foi dessa forma.
7:39 a 8:04 – o que fez eles subirem o monte e fincarem uma bandeira, era uma enorme vontade de voltar para casa – FALSO
Primeiro que não houve bandeira fincada no Monte Castello. Não há na bibliografia da FEB nenhuma sustentação nesse sentido (inclusive, como citado antes, eles tiveram que lutar para manter as posições tomadas). Além do mais, não há como afirmar que eles só queriam voltar para casa. Havia outras motivações em jogo, que podiam ir do desejo de sobreviver (puro e simplesmente), até lutar por um ideal, fosse ela qual fosse.
8:05 a 8:30 – só faziam uma pergunta, mesmo sob perigo: você sabe de onde eu venho? – FALSO
Como dito anteriormente, a Canção do Expedicionário só ficou famosa no final do conflito e no pós-guerra. Os Pracinhas dificilmente conversaram da forma como o ator propõe.
8:31 em diante – Opiniões pessoais
Dali para frente são opiniões do autor na tentativa de fornecer um discurso de neutralidade para agradar seus públicos neste momento de polarização política e ideológica, além de uma busca por reafirmar os pontos de vista dele. A análise sobre a FEB terminou ali.
Conclusão
Ainda que o ator tenha feito com a melhor das boas intenções, com coração cheio de sentimentos bons, a história contada por ele tem muitos pontos imprecisos ou falsos e que ao invés de ajudarem a memória da FEB, como soldados simples que fizeram a parte deles, contribuem para criar mitos sobre o grupo de brasileiros que lutou na Itália. Confira o vídeo:
Por Helton Costa/Jornalismo de Guerra
[1] Entre a amizade, a proibição e clandestinidade: O Partido Nazista no Brasil e as relações com o governo de Getúlio Vargas. Disponível em http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364408899_ARQUIVO_ANPUH2013.pdf.