Comandante da FEB deu bronca em pracinhas que “negociavam fardamentos”

O calendário marcava o dia 23 de novembro de 1944 e os soldados da Força Expedicionária Brasileira – FEB estavam espalhados por posições no entorno de Monte Castello e Torre di Nerone. Porém, quem não estava em linha, estava em vilarejos e cidades, onde tinham contato com a população civil. Era ali, na retaguarda, que estavam os elementos alvos de uma Nota de Serviço do Comandante da FEB, general João Batista Mascarenhas de Moraes.
Dizia ele, no documento, que “este Comando foi cientificado pelo IV Corpo [ de Exércitos Aliados] de que praças desta DIE [Divisão de Infantaria Expedicionária], andam negociando peças do fardamento com a população civil. Esse procedimento, deve encontrar a mais enérgica repreensão, especialmente, da parte dos oficiais, os quais deverão cooperar nesse sentido com a Polícia Militar, propondo e entregando a esta, qualquer civil portador de peças de uniforme”.
Mascarenhas ainda deixava claro que a polícia agiria de forma firme. “Os comandantes de unidades deverão determinar frequentes revistas de fardamento, a fim de verificar se suas praças estão de posse das peças que lhes têm sido distribuídas. À Polícia Militar, já foram dadas ordens severas para repreensão dessas irregularidades, inclusive a apreensão do material encontrado, verificação de sua origem e prisão do portador”.
Porém, ao que parece, em bibliografias daquele período, as ordens não foram acatadas com tanto afinco pelos soldados. Na Engenharia, segundo o comandante da unidade, Coronel José machado Lopes:
“Com a aproximação da estação invernosa, foi distribuída a cada homem, mais dois cobertores verde-oliva, de fabricação nacional. O nosso Capelão, Padre Nilo Kollet, pediu-nos permissão para realizar a Missa do Galo na igrejinha de Suviana, o que permiti, desde que fosse respeitado o blackout na frente.
Assistindo a essa solenidade, a que compareceu a população local, notei que a maioria das moças estava, mais ou menos, uniformizada de verde-oliva. Chamando a atenção do meu subcomandante, Major de Albuquerque Lima para o estranho fato, ele respondeu-me em surdina: são os nossos cobertores.
Aproximei-me de um cabo que estava ao lado de uma das moças e indaguei onde estavam seus cobertores. Meio confuso, acabou confessando que os havia dado aquela “signorina”. Havia a falta de tudo na frente. Recrimineio e disse-lhe que o inverno ia ser rigoroso e que, fatalmente, sentiria falta dos mesmos. Ao me retirar da igreja, ouvi-o dizer a um companheiro: ‘um cobertor de orelha aquece muito mais do que dois cobertores de algodão[1]’”.
A Intendência fazia o que dava, de tempos em tempos, para recolher os uniformes e materiais não utilizados, como em abril de 1945, quando no dia 05 foi emitida uma ordem para que os comandantes de unidades procedessem com a devolução das vestimentas de inverno que estavam em posse dos soldados da FEB. A ordem era de que as roupas fossem devolvidas em Pistoia, até 30 de abril.
Além do fardamento brasileiro e americano, era para entregarem os cobertores que fossem mais do que dois e todas as peças que estivessem em estoque e que dissessem respeito ao inverno. Naquele mesmo mês, entre 20 e 30 de abril, a Intendência entregou um novo fardamento para períodos de mais calor[2]. Se devolveram tudo, não dá para saber.
Finalidades diversas
E mesmo soldados da Intendência também aprontavam. Um deles, de iniciais A.J. da S, preso com outros colegas por furto e desvio de itens para revender, para consumo próprios e para outros fins, tinha fardamento, cobertores e roupas de cama estocados na casa de uma namorada italiana quando foi detido. No caso dele, pegou um ano, sete meses e dez dias de reclusão[3]. A condenação foi em 24 de outubro de 1945, porém, como houve um indulto em 03 de dezembro do mesmo ano, nem cumpriu o que se esperava de pena.
Outras vezes, o uniforme desviado era usado param fins mais humanitários. O pessoal da Brigada Costrignano, dos partigiani italianos, por exemplo, foi bem recebido por pracinhas quando chegaram em 30 de novembro de 1944, com 28 combatentes, à localidade de Borra, um pequeno vilarejo de Gaggio Montano, que era ocupado por soldados brasileiros.
Romolo Ferrari, conhecido como Dinamite, era um dos homens da Resistência. Ele contou que assumiram um posto perto dos brasileiros e que de noite, quando esfriou bastante, eles estavam ainda com as mesmas roupas que tinham passado a campanha inteira: calças curtas e camisas simples.
“Estava frio, embora estivéssemos em baixa altitude. Estávamos a pouco menos de 600 metros acima do nível do mar, a neve já tinha caído, não muita, mas como dizem, com geada. Os primeiros brasileiros que me viram vestido assim quase desmaiaram. Todos se ocuparam: alguns trouxeram camisa, outros calças, outros jaquetas, então, em pouco tempo, me vi completamente vestido com o uniforme militar brasileiro[4]“, conta Dinamite.
Depois disso, os grupos se entrosaram, dividiram o calor de uma fogueira, histórias, canções e conversaram até tarde, tendo se estabelecido uma verdadeira amizade nos dias que se seguiram.
Como os uniformes “sumiram” no Brasil (versão de um veterano)
Assim que a guerra terminou na Itália, os Pracinhas brasileiros foram voltando em escalões para o país. Ao chegar aos quartéis, os que não eram militares foram dispensados. Os uniformes que usaram na campanha foram entregues no Rio de Janeiro. Alguns poucos militares conseguiram levar algo para casa, mas, a maioria não conseguiu. Com o tempo, esses uniformes começaram a sumir dos depósitos, até que, misteriosamente, pegaram fogo. Pelo menos é o que defende o 3º sargento, José Waldir Merçon, que serviu na Bateria de Comando da Artilharia da FEB, no livro “A minha vida”, página 139.
“Entregamos nosso fardamento e ficamos sabendo depois – por meus irmãos que trabalhavam no material bélico em triagem – que nossas roupas formavam duas pirâmides (era o nome que dávamos aos montes de roupas, de utilidades que eram tratadas pela população para o esforço de guerra), da altura de dois edifícios, ao ar livre. Pouco a pouco, foram baixando de altura, pelos freqüentes furtos e quando viram que estavam pequenas e teriam que explicar o fato, simplesmente fizeram duas fogueiras. Os bombeiros tiveram seu exercício e as explicações se simplificaram. Se eu tivesse sabido que nossas preciosas roupas americanas de pelúcia para enfrentar o inverno europeu teriam este fim, só devolveria o cinto, a arma e o capacete de aço”, explicou Merçon.
[1] 2 LOPES, José Machado. 9º Batalhão de Engenharia de Combate na Campanha da Itália. 2ª ed. Rio de Janeiro: Publicação do Autor, 1985, p. 54.
[2] BIOSCA, Fernando Lavaquial. A intendência no teatro de operações da Itália. Rio de Janeiro: Bibliex, 1950, p.236-238.
[3] ALBUQUERQUE, Bento Costa Lima Leite de. A justiça militar na campanha da Itália: constituição, legislação, decisões. Brasília: Superior Tribunal Militar, 1995, p.165-171.
[4] AMICARELLA, Daniele; SULLA, Giovanni. Fratelli sulla Montagna: Esercito brasiliano e partigiani sull’Appennino tosco emiliano. 1. ed. Modena: Il Fiorino, 2016, p. 76.
