Meu amigo Pracinha, por Helton Costa

Pracinha é recebido pela família no retorno para casa

Meu amigo Pracinha nasceu várias décadas antes dos meus pais e, claro, antes de eu mesmo ter nascido.

Cresceu e morou no interior do Brasil, trabalhou na roça com a família. Quando foi para o Exército, meu amigo Pracinha só queria cumprir o tempo e sair. Tinha o sonho de ser motorista na cidade grande. Veio a guerra e levou seus sonhos.

Meu amigo Pracinha nunca tinha visto o mar e sequer conhecia a capital do nosso estado, que dirá a o Rio de Janeiro, a capital do Brasil naquela época. Ele viajou de navio, comeu comida enlatada, vomitou até não poder mais e desembarcou na Itália. Pisou em terra, olhou para o céu e pediu proteção divina.

Ele não era forte, não era alto, era mais feio que bonito, filho do João e da dona Maria, um desses tipos que a gente encontra e se identifica.

No acampamento, cantou em volta da fogueira, entre um treinamento e outro. Quase chorou de saudade de casa, mas, tinha a convicção de que daria conta e que Deus cuidaria do pessoal aqui no Brasil.

Enviado ao combate, segurou os nervos no primeiro bombardeio que sofreu e prometeu ao Pai Celestial que tentaria ser uma pessoa melhor se sobrevivesse.

Meu amigo Pracinha viu os pedaços de carne do amigo de regimento, da mesma cidade que a dele, passar amontoado em cima de uma maca e assistiu o sargento chorar de dor sem metade das tripas, atingido por uma MG42.

Outro dia xingou mentalmente o tenente que os mandou atacar sem os devidos cuidados, desejou a morte de todos os alemães da face da Terra e que fosse uma morte dolorosa e cheia de sofrimentos.

Meu amigo Pracinha deu cigarro ao prisioneiro que se entregava dizendo “Kamaraden, kamaraden”.

No inverno, ele foi pedra, rocha e montanha, resistiu com bravura aos quase 20 graus negativos na posição mais afastada do mais alto monte em poder dos brasileiros.

Quando o inverno passou, era veterano, sabia que era matar ou morrer e mesmo assim se comoveu ao acertar com um único tiro no peito, um alemão de meia idade que guarnecia uma posição de morteiros.

Meu amigo Pracinha passou por caminhos minados e saiu com vida. Esteve em Roma, Firenze e Pistóia para aproveitar um dia de folga, depois voltou ao inferno em Monte Castelo, La Serra, Montese, Castelnuovo e no cerco aos alemães em Fornovo/Collecchio. Quando os alemães tentaram romper o cerco em Segalara, viu o branco dos olhos do inimigo, disparando a menos de um metro. Era um menino, talvez mais novo que ele. Ficou triste, mas, era a guerra. Rezou por aquela alma tão jovem, com o cadáver a lhe observar com os olhos abertos.

Meu amigo Pracinha ficou bêbado por quase uma semana quando a guerra acabou, intercalando entre sorrisos e lágrimas.

Da mesma maneira que foi, meu amigo Pracinha voltou. Chegou como herói no Rio de Janeiro, com chuva de papel picado e beijos das moças. Entregou a farda extra e o armamento no quartel e recebeu um papel de que estava dispensado.

Pracinha reencontra a família no Brasil

Voltou em silêncio, pois, lhe disseram que não era para falar sobre a guerra. O silêncio foi aumentando cada vez mais, principalmente quando lhe negavam emprego na cidade grande, onde foi morar. Diziam que era um neurótico de guerra. Como as mesmas pessoas que ele esteve a defender por nove meses, tinham coragem de fazer aquilo?

Encontrou o amor e o amor precisou ser paciente para cada noite em que meu amigo Pracinha acordava tendo espasmos em meio a pesadelos e a comandos de ataque.

Desse amor vieram os filhos. O trabalho era o que aparecia, até que um dia uma lei lhe deu vaga no serviço público e ele foi ser carteiro. A cidade grande agora era pequena, ele a conhecia como a palma da mão.

À associação de ex-combatentes parou de ir quando começaram a brigar por política. Nem desfilar no 07 de setembro ele quis mais.

No quartel, não lhe chamavam, nem mesmo quando os militares estavam no poder. Lembrar-se dele dependia muito mais de quem estava no comando do quartel local, do que de quem estava no comando do país. E o comandante não tinha ido para a guerra, por isso, não se importava com quem tinha combatido enquanto ele, que não foi da FEB, subia de cargos aqui no Brasil.

Essa falta de reconhecimento virou decepção e ele só voltou para o quartel nos anos 90, quando um dos netos pediu para ver o desfile de Independência e amigos o convenceram a desfilar também. Dali em diante, em toda solenidade militar era chamado.

Voltou para a Associação, o clima era outro, todos estavam mais idosos, mais experientes e sabiam que o tempo lhes estava escapando. Um a um os amigos do meu amigo Pracinha foram partindo. Eram 60, hoje são só quatro, contando com ele, que no auge de seus quase 100 anos já não tem a força que tinha antes.

Alguns filhos e netos dos amigos falecidos venderam os pertences dos mortos para colecionadores. Meu amigo Pracinha tem pavor de que isso aconteça com ele, de que lhe apaguem da história e vendam suas relíquias: um capacete M1, seu cantil, seu bornal, seu distintivo da FEB, uma imagem de Nossa Senhora, 13 fotos e suas medalhas, recebidas quase 45 anos depois do final da guerra.

Hoje ele toma remédios para a pressão, para o coração e para dormir. Os espamos que há tanto tempo não o atormentavam, voltaram. As antigas lembranças, também. Sonha e conversa com amigos mortos. Relembra Monte Castelo, La Serra, Montese e Collecchio, além do batismo de fogo em Camaiore e o tenente que tanto amaldiçoava em pensamento.

Famílias foram importantes para o acolhimento dos ex-combatentes

Quem lhe conforta é o amor de sua vida, um anjo que Deus lhe deu para tratar de suas feridas. Não quer saber de política, já viu presidentes se sucederem, subirem e caírem, falarem muito e não fazerem quase nada, por isso prefere estar com os bisnetos em almoços de domingo, quando mostra o capacete e as fotos.

Meu amigo Pracinha me liga. Conhecemos-nos em uma entrevista para um jornal. Ficamos amigos, quase uma relação de avô e neto. Sempre que eu o ouço, me sinto privilegiado em conhecê-lo. Me vem uma vontade doida de chorar. Conheci muitos dos lugares por onde ele passou na Itália, mas, nunca saberei como foi de verdade, quando ele os libertou.

Meu amigo Pracinha sabe disso e mesmo assim, conversa comigo como se eu fosse importante, como se minhas palavras tivessem o peso das dele. Nunca terão! Eu sou só o amigo do Pracinha, daquele herói de carne e osso, humano e ao mesmo tempo divino em sua essência. Ah, meu amigo Pracinha, como eu queria que você fosse eterno!

Quando a hora chegar, que você possa percorrer os salões celestiais em companhia dos seus amigos queridos que já partiram, que volte a ser aquele jovem mais feio que bonito, filho do João e da dona Maria, que olhai por nós que aqui ficamos, para que nunca em nossas vidas precisemos trilhar o caminhos que você foi obrigado a caminhar contra o nazifascismo. Que Deus te ilumine e te guarde! Que assim seja, amém!

 

*****Helton Costa é jornalista, autor de “Crônicas de sangue: jornalistas brasileiros na II Guerra Mundial” e “Confissões do front: soldados do Mato Grosso do Sul na II Guerra Mundial”

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